terça-feira, 26 de julho de 2011

Faça-se justiça!















In PÚBLICO, 26.07.2011

«O provedor de Justiça considera que o despacho governamental que autoriza o atravessamento da Mata Nacional dos Medos e das Terras da Costa, no concelho de Almada, para construir uma polémica estrada é inválido e deve ser revogado.

Naquela que foi uma das suas primeiras intervenções junto do novo Governo, Alfredo José de Sousa mostra-se desfavorável à construção da Estrada Regional 377-2 projectada para ligar a Costa de Caparica à Fonte da Telha, numa extensão de 9.1 quilómetros e alvo de sucessivos protestos de mora dores da zona. O provedor de Justiça dá à ministra da Agricultura Ambiente e Ordenamento do Território e ao ministro da Economia um prazo de 30 dias para se pronunciarem sobre esta questão.

O despacho que Alfredo José de Sousa afirma ser inválido data de Março de 2011 e nele se diz que a construção da ER 377-2 terá como efeito uma melhoria das acessibilidades, permitindo a redistribuição de tráfego de acesso às praias da Costa de Caparica, melhorando as condições de circulação e de segurança. Assim sendo, declara-se o relevante interesse público deste empreendimento, apesar de se admitir que para a construção desta via será ocupada uma área significativa de terreno que se encontra integrada em RAN (Reserva Agrícola Nacional).

O avanço desta estrada tal como está projectada vai afectar duas áreas sensíveis: a reserva botânica da Mata Nacional dos Medos e as Terras da Costa, uma área agrícola com cerca de200 hectares, que se distingue pela fertilidade dos seus solos. O Provedor de Justiça recorda, num documento a que o PÚBLICO teve acesso, a oposição de alguns serviços do próprio Estado ao sacrifício dessas áreas e considera que não foi demonstrada a inexistência de alternativas idóneas de traçado.

Alfredo José de Sousa também alerta para um peso demasiado do interesse público rodoviário no processo de decisão, mais concretamente uma excessiva concentração de poderes nas mãos da Estradas de Portugal, dona da obra, entidade licenciadora, entidade expropriante, entidade incumbida de verificar a conformidade do projecto de execução com a declaração de impacto ambiental e ainda concedente em regime de parceria público privada.

Também a Quercus está contra a construção desta via, porque destruiria uma importante zona da Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos, arrasando ainda as Terras da Costa. A associação ambientalista fez ontem saber que interpôs em tribunal uma providência cautelar para obter a suspensão da eficácia do já referido despacho dos então secretários de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rural e das Obras Públicas e das Comunicações.

A Quercus apela aos tribunais e ao novo executivo para que sustenham a construção da estrada nos termos projectados, diz em comunicado. A associação contesta também a legalidade de um outro despacho que declarou a utilidade pública das expropriações para a construção da Estrada Regional 377-2.»


Esta é uma causa de há muitos anos. Por ela já fui insultado pelo poder comunista de Almada. Por ela tenho sido visto de lado pela oposição colaborante do PS, PSD e BE. O Provedor de Justiça vem agora dizer o que era evidente.

As palavras do Senhor Provedor sobre Estrada da Vergonha são uma condenação clara de políticas de especulação imobiliária, promovidas por gente que, sem um pingo de amor pela sua terra, a prostituem em projectos obscenos.

Que se faça agora justiça!

quarta-feira, 6 de julho de 2011

In pace













Há pessoas cuja vida é a expressão sublime da dignidade do Homem. A Dra. Maria José Nogueira Pinto deixa o legado de uma vida feita de combate - até ao último momento -, de serviço, de convicções defendidas com a veemência de quem sabe o que quer. Recebi a notícia da sua morte com comoção. Mas também com a esperança jubilosa dos filhos de Deus. Que descanse em paz.



Velhos como os trapos

por Maria José Nogueira Pinto

In DN

Chamaram-lhes seniores, idosos, pessoas da terceira idade. Usaram com eles um léxico variado, uma espécie de cobertura de açúcar que foi ocultando uma dura e triste realidade. Conheci-os, há muito, nas camas dos hospitais, nas camas dos lares, prisioneiros em suas casas, sós como cães em bancos de jardins e soube que alguns eram encontrados sem vida pelas ajudantes familiares, depois de terem enfrentado a morte na mais completa solidão.

Vieram ter comigo, uma manhã de Outono já arrepiada de frio, eram cinco, três muito velhos e dois apenas um pouco menos, a pé, amparando-se mutuamente através das ruas íngremes do Bairro Alto, até chegarem ao meu gabinete da Misericórdia de Lisboa para me exporem as suas vidas, carências e aflições. O assunto era tão melindroso que roçava a indignidade, uma nudez crua que submetiam ao meu olhar porque a vida a isso os obrigava: tinha (alguém, os Serviços, a Senhora Técnica? Não sabiam ao certo) sido dada uma ordem que cortava o número de fraldas a que tinham direito mensalmente. "Ora as fraldas, a menina sabe, fazem-nos muita falta". "Então agora como é que têm feito?", perguntei. "Cortamos cada fralda em três pedaços e assim rende mais. Mas é muito mau", disse outra, porque "esfarelam-se todas e não protegem". "Pois não", concluíram em coro. Mandei vir uma fralda e uma tesoura e, mais por mim do que por eles, pedi-lhes que repetissem esse gesto que transformava em três pedaços esfarelados uma fralda de adulto.

Fiquei envergonhada - julgo que essa era a ideia - por coisas destas acontecerem paredes meias com quem manda e dirige, com quem gere e distribui recursos, pessoas que não usam fraldas, não as cortam em três, para quem andar nos meandros dos bairros lisboetas não significa um esforço físico excessivo, pessoas como eu que, no mínimo, têm que levar murros no estômago quando coisas destas acontecem. Se alguma dúvida me restasse ela dissipou-se nessa manhã bisonha: pode o envelhecimento ser, na maioria dos casos, um caminho para a pobreza, a indignidade, a dependência mais aviltante? Não. Mas para isso era (e é) imperativo priorizar esta questão, dar-lhe uma estratégia, dotá-la de recursos e prossegui-la sem hesitações. Foi assim que se fez o levantamento dos idosos no concelho de Lisboa, que se estudou a cobertura de apoio domiciliário, o tipo de respostas novas que seria preciso criar para fazer face a problemas diferentes que emergiam brutalmente após décadas de uma política de apoios que se revelavam manifestamente insuficientes e desadequados. Foi assim que nasceu, por exemplo, o "Mais Voluntariado Menos Solidão" com a preciosa colaboração do "Coração Amarelo" e da Cruz Vermelha. Foi assim, também, que fomos buscar o Euromilhões, um novo jogo social consignado ao envelhecimento e às dependências e que hoje, constou-me, foi parcialmente desviado para manobras de diversão do mais puro marketing político.

Afinal parece que ninguém sabia que Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo (o sétimo), que os nossos velhos são os mais pobres da Europa, que na sua maioria são doentes crónicos, que muitos sofrem ou vão sofrer de demências e que para além de dependências crescentes se encontram sós, com pouca ou nenhuma família, sem redes de vizinhança efectivas, optando por comprar remédios ou comida. O census de 2001 apontava já para 35 mil idosos isolados na cidade de Lisboa. Confinados ao casco histórico e a outras zonas desertificadas viram os seus descendentes serem expelidos para as periferias. Muitos destes fogos de habitação nunca tiveram obras, nas mansardas pombalinas os telhados em más condições deixam entrar a chuva, o frio e o calor tórrido do Verão.

Apesar de tanto Ministério, Direcção-Geral, Gabinete de Estudos, Observatórios, dados estatísticos e milhões e milhões de euros gastos sabe-se lá como, em Portugal é possível não conhecer a realidade e trazê-la para os jornais a propósito de um único caso concreto. Como se este enorme drama não valesse por ser tão silencioso. E esta é, estou certa, a nossa maior falta e a nossa pior vergonha.