domingo, 26 de fevereiro de 2012

Cegos, surdos, mudos

Bem podem proclamar as virtudes do poder local democrático, que só soa a hipocrisia. Décadas da mesma pessoa no poder, que entende que, no seu Município, tudo pode, tudo manda, tudo decide, e que ninguém se atreva a atravessar-se no seu caminho.

Uma estrutura autárquica que se confunde com o próprio partido, lugares públicos ao sabor do cartão de militante, familiares e amigos nos lugares dirigentes, concursos à medida dos escolhidos, ascensões meteóricas na carreira sem justificação aparente. 


Como se não bastasse, a rede de dependências que se estende ao longo de tantos anos tolhe, inibe, controla, fazendo desaparecer uma oposição que, a bem sabe-se lá de quê, se demite de exercer o mandato que lhe foi outorgado pelos eleitores. 

Em Almada, a CDU não tem maioria na Câmara Municipal de Almada, mas em nada se nota esse facto. A subserviência de PS, PSD e BE têm permitido à presidente Maria Emília e ao seu partido prosseguir, com tiques de totalitarismo, o seu mandato triunfal. Basta consultar as votações no órgão executivo, para ver que alguns discursos inflamados são mera maquilhagem dos partidos da oposição. 

Nunca tive grandes expectativas quanto ao resultado dos trabalhos da Comissão Eventual sobre o caso do Engº Jorge Abreu. Mas nunca pensei ver os meus colegas de oposição tão curvados ao poder comunista. 

Neste caso há pessoas que têm sofrido muito. Não se podia exigir menos aos membros da Comissão do que chegar à verdade. A toda a verdade. 

Há uma história que o Relatório Final, que o CDS não aprovou, não conta. Uma história que a CDU não deixou aprofundar em sede de Comissão, bloqueando a audição de mais pessoas. Uma história que os senhores deputados municipais não quiseram conhecer. Uma história que, por dever de consciência, entendo que devo publicar, e que consta em anexo ao Relatório da Comissão como sendo a posição do CDS. 

a) Em 3 de Junho de 2002, os SMAS e o Eng. Jorge Abreu celebraram um acordo de actividade ocupacional. Em 3 de Fevereiro de 2003, assinaram um contrato a termo certo. 

b) O trabalhador foi colocado, em sequência dos contractos referidos, no Departamento Municipal de Tratamento de Águas Residuais, dirigido pela Eng.ª Lurdes Alexandra Neto de Sousa, por infeliz coincidência filha da Presidente da Câmara, com funções de manutenção electromecânica. 

c) De 1 de Janeiro a 2 de Fevereiro de 2003, o Eng. Jorge Abreu desempenhou as mesmas funções sem qualquer relação jurídica e recebendo o salário mínimo nacional. 

d) No cumprimento das suas tarefas, o Eng. Jorge Abreu deu conta à sua chefia de irregularidades técnicas no projecto da ETAR da Mutela, expressas em relatórios mensais subscritos por si e pela Eng.ª Cristina Furtado. 

e) Tais relatórios informavam, designadamente, o subdimensionamento das bombas de água bruta, erros grosseiros na automação, erros na instalação do circuito de bio-gás e da cablagem entre edifícios, e a impossibilidade de funcionamento dos cogeradores. 

f) O Eng. Jorge Abreu nunca recebeu da chefia qualquer resposta aos relatórios enviados, tendo sentido da sua parte uma protecção ao consórcio responsável pela obra. 

g) O trabalhador procurou dar conta das irregularidades ao Presidente do Conselho de Administração dos SMAS, Dr. Henrique Carreiras, não tendo sido recebido. 

h) A ETAR da Mutela foi aceite pelo Município de Almada em Setembro de 2005, sem terem sido feitas as correcções técnicas propostas pelo Eng. Jorge Abreu. 

i) Em Dezembro de 2005, as bombas de água bruta da ETAR da Mutela faliram. 

j) A ETAR da Mutela esteve sem funcionar até 2008, tendo sido substituídas as bombas de água bruta, o que acarretou um prejuízo grave para o Município. 

k) No início de 2006, o trabalhador foi despedido ilicitamente e retirado da lista de classificação final dos candidatos ao concurso para Técnico Superior de 2ª classe, o que considerado pelo Tribunal Central Administrativo Sul como «gravíssima decisão». 

l) Resulta das decisões judiciais a anulação dos dois actos anteriores. Esses actos configuram o início do tratamento persecutório ao trabalhador. 

m) Já depois da decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, o Conselho de Administração dos SMAS (presidido pelo Ver. Nuno Vitorino) deliberou, a 11 de Fevereiro de 2009, renovar a decisão de retirar o Eng. Jorge Abreu da lista de classificação final dos candidatos ao concurso para Técnico Superior de 2ª classe. 

n) Na sequência das decisões dos tribunais, o Eng. Jorge Abreu foi colocado no Departamento de Gestão de Redes de Água, Drenagem e Logística, sujeito a um período experimental. 

o) A decisão de não colocar o trabalhador no Departamento Municipal de Tratamento de Águas Residuais não permitiu repor integralmente a situação prévia ao despedimento ilícito e, nas palavras do Presidente do Conselho de Administração dos SMAS, Dr. José Gonçalves, «corresponde à letra mas não tanto ao espírito» da decisão dos tribunais. 

p) O júri que apreciou esse período experimental era constituído pelo Eng. Ramiro Norberto (Director do Departamento), pelo Eng. Carlos Sousa (Director do Departamento Municipal de Produção e Controlo de Qualidade da Água, e familiar da Eng.ª Lurdes Alexandra Neto de Sousa, directora do Eng. Jorge Abreu na ETAR da Mutela) e pelo Dr. Carlos Mendes (chefe da Divisão Municipal de Recursos Humanos, e responsável formal pelo despedimento ilícito do Eng. Jorge Abreu). 

q) O júri não entregou ao trabalhador os critérios de avaliação do período experimental. 

r) Durante o período experimental o júri não reuniu com o trabalhador. 

s) Durante o período experimental não foi proposta ao trabalhador qualquer acção de formação. 

t) Os objectivos estabelecidos para o período experimental incluíam a área de electromecânica e o recurso ao programa informático SAP-PM. Só passados oito meses a chefia informou o Eng. Jorge Abreu que não deveria dedicar-se às reparações electromecânicas e que a aplicação informática não estava disponível, apesar dos relatórios mensais do trabalhador. 

u) A actuação da chefia e do júri foi negligente e censurável. 

v) O júri atribuiu ao trabalhador uma classificação final de 10 valores, que inviabilizaria o vínculo laboral, sem fundamentar objectivamente essa classificação e sem proceder à audiência prévia determinada por lei. 

w) Em despacho de 9 de Agosto de 2011, o Presidente do Conselho de Administração dos SMAS, Dr. José Gonçalves ordenou a reintegração definitiva do trabalhador, com atribuição final de 14 valores. Esta decisão, que pode estar ferida de ilegalidade, constitui uma censura implícita à actuação do júri. 

x) Em 30 de Junho de 2011 o Director do Departamento de Gestão de Redes de Água, Drenagem e Logística atribuiu ao trabalhador objectivos e competências para o segundo semestre de 2011, não constando critérios de medida da sua avaliação. Por outro lado, os critérios de superação são ambíguos. Mais, as competências correspondem a pessoal operário e auxiliar, e não a técnico superior. 

Os factos apurados configuram atitudes abusivas, persecutórias e censuráveis das chefias, com degradação do clima de trabalho, não havendo indicação de que tenham cessado. O trabalhador tem sido vítima de tratamento discriminatório desde a época em que desempenhava funções na ETAR da Mutela. 

Mais, as irregularidades no pagamento das indemnizações e na declaração do IRS causaram danos pessoais e familiares irreversíveis e que poderiam, e deveriam, ter sido evitados. 

Face às evidências, é incompreensível que a Comissão tenha optado por conclusões inócuas e repletas de eufemismos, de que «desarticulação funcional» é só um exemplo. 

Mas algo se apurou no trabalho da Comissão. A resposta que a Senhora Presidente da Câmara não quis dar ao CDS na assembleia nem em sede do seu dever de resposta a um requerimento do nosso Grupo Municipal:

Em Dezembro de 2010, a sede dos SMAS foi sujeita a um mandado de busca e apreensão do Ministério Público, no âmbito de um inquérito que investiga a prática de crimes de tráfico de influências, peculato, participação económica em negócio e fraude na obtenção de subsídios, relacionados precisamente com a ETAR da Mutela, onde começou esta triste história de um trabalhador, num Município que, ainda por cima, se diz de esquerda.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Quo vadis, CDS?

O CDS está no Governo de Portugal. Alguém consegue reconhecer na sua prática algum dos compromissos eleitorais repetidos à saciedade?


Onde está o partido que denunciava o esbulho aos contribuintes e que agora é cúmplice de um ataque fiscal feroz e insustentável aos portugueses?

Onde está o partido que afirmava a urgência de «medidas fiscais favoráveis à classe média no IRS, com aplicação imediata, seja no imposto a pagar, na retenção na fonte, ou nas condições de reembolso e pagamento»? O partido que propunha a redução gradual do IRC e do IVA?

Onde está o partido que se comprometia com o «reforço da protecção social dos casais desempregados e dos desempregados com filhos»?

Onde está o partido que reconhecia a necessidade de «um esforço suplementar, aliás elementarmente justo, na elevação das pensões mais baixas»?

Onde está o partido do «novo contrato fiscal para a redução de impostos» e do «impulso radical às micro, pequenas e médias empresas»?

Onde está o partido sa segurança e da protecção da polícia, mas que convive com índices de criminalidade preocupantes e agentes desalentados? 

Onde está o partido do mar e das novas indústrias marítimas?

Onde está o partido do «programa de trabalho activo e solidário» e da «fiscalização das contratações fraudulentas»?


Onde está o partido da cultura de mérito e esforço, e que se proponha «reduzir a taxa de pobreza que envergonha o País?


Onde está o partido das políticas de família, preocupado com o declínio demográfico e defensor da natalidade?

Onde está, sobretudo, o partido democrata-cristão e personalista, que assiste impassível a ataques grosseiros à dignidade da pessoa humana?

O CDS baniu da sua acção qualquer compromisso ideológico. É um novo partido, que não respeita o seu programa e o seu património, sem qualquer linha política reconhecível. Assemelha-se a um cata-vento que sobrevive de conjunturas e lideranças entronizadas, preocupado em ser poder porque sim e porque dá jeito arrumar uns rapazes que nada mais sabem fazer na vida.

São os novos tempos de um partido democrata-cristão liderado no Parlamento por um maçon e com dirigentes confortáveis com isso.

Vamos pagar caro este colapso ideológico.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Este ditoso Poder Local...

PARAÍSOS PROSTITUÍDOS
Miguel Sousa Tavares

Em muitos e muitos casos a razão pela qual o litoral alentejano e o barlavento algarvio foram saqueados, sem pudor nem vergonha, tem apenas um nome: corrupção.

Segunda feira, 28 de julho de 2008

A primeira vez que passei uns dias de Verão em Porto Covo, ainda o Rui Veloso não tinha imortalizado a aldeia e a sua ilha do Pessegueiro. Pouco mais havia do que aquela simpática praceta central, de onde irradiavam três ou quatro ruas para baixo, em direcção ao mar, e duas ou três para os lados. Tinha nascido uma pequena urbanização de casas de piso térreo, uma das quais me foi emprestada por um amigo para lá passar uns quinze dias. Havia a praia em frente, magnífica, e a angustiante dúvida de escolher, entre três restaurantes, em qual deles se iria comer peixe, ao jantar.

Nos dois anos seguintes, arrastado pela paixão pela caça submarina, aluguei uma parte de casa em Vila Nova de Milfontes, com casa de banho autónoma e duche no pátio interior, ao ar livre. Instalei-me com o meu material de mergulho e um pequeno barco de borracha, no qual ia naufragando quando o motor pifou e comecei a ser arrastado pela corrente do rio Mira em direcção aos vagalhões à saída da baía. Mas não era o sítio adequado para caça submarina e rapidamente troquei a incerteza da minha destreza pelo esplendor de uma tasquinha branca, de quatro mesas apenas, onde escolhia de manhã o peixe que iria comer à noite. Foram dias de deslumbramento, naquela que eu achava ser provavelmente a mais bonita terra do litoral português.

Mas foi Lagos, claro, a primordial e mais duradoura das minhas paixões. Tudo o que eu possa escrever sobre a fantástica beleza da cidade caiada de branco, com ruas habitadas por burros e polvos secando ao sol pregados aos muros, uma gente feita de dignidade e delicadeza, praias como nenhumas outras em lado algum do mundo, a terra vermelha, pintada de figueiras e alfarrobeiras, prolongando-se até às falésias que ficavam douradas ao pôr-do-sol, enquanto as traineiras passavam ao largo em direcção aos seus campos de pesca nocturnos, tudo isso parece hoje demasiadamente belo para que alguém possa simplesmente acreditar. Se eu contasse, diriam que menti - e eu próprio, olhando hoje Lagos, também acho que seguramente foi mentira.

A partir de Lagos, fui descobrindo todo o barlavento algarvio, cuja luz é tão suave que parece suspensa, como se não fizesse parte do próprio ar. Descobri a solidão agreste de Sagres, onde se ia aos percebes ou apenas olhar o mar do Cabo de S. Vicente, na fortaleza, que era rude como o vento e o mar de Sagres, e hoje é uma casamata de betão que, ao que parece, se destina a homenagear a moderna arquitectura portuguesa. 

Descobri o charme antiquado da Praia da Rocha, onde se ia à noite ver as meninas de Portimão, ou o "souk" em cascata de Albufeira, onde se ia ver as inglesas e dançar no Sete e Meio. E descobri outras terras de pescadores e veraneantes, como Armação de Pêra ou Carvoeiro, praias de areia grossa e mar transparente como eu gosto, cigarras gritando de calor nas arribas, polvos tentando amedrontar-me quando os olhava debaixo de água.

Não vale a pena contar. Quem teve a sorte de viver, sabe do que falo; quem não viveu, não consegue sequer imaginar. Porque esse Sul que chegava a parecer irreal de tão belo, esse litoral alentejano e algarvio, não é hoje mais do que uma paisagem vergonhosamente prostituída. Sim, sim, eu sei: o desenvolvimento, o turismo, a balança comercial, os legítimos anseios das populações locais, essa extraordinária conquista de Abril que é o poder local. Eu sei, escusam de me dizer outra vez, porque eu já conheço de cor todas as razões e justificações. Não impede: prostituíram tudo, sacrificaram tudo ao dinheiro, à ganância e à construção civil. E não era preciso tanto nem tão horrível.

Podiam, de facto, ter escolhido ter menos turistas em vez de quererem albergar todos os selvagens da Europa, que nem sequer justificam em receitas os danos que em seu nome foram causados. Podiam ter construído com regras e planeamento e um mínimo de bom gosto. Podiam ter percebido que a qualidade de vida e a beleza daquelas terras garantiam trezentos anos de prosperidade, em vez de trinta de lucros a qualquer preço.

E todos os anos, por esta altura, percorrendo estas terras que guardo na memória como a mais incurável das feridas, faço-me a mesma pergunta: Porquê? Porquê tanta devastação, tanto horror, tanta construção, tanta estupidez? Tanto prédio estilo-Brandoa, tanto guindaste, tanto barulho de obras eternas, tanta rotunda, tanta 'escultura' do primo do cunhado do presidente da câmara, e sempre as mesmas estradas, os mesmos (isto é, nenhuns) lugares de estacionamento, os mesmos (isto é, nenhuns) espaços verdes?

Não, nem mesmo o mais incompetente dos autarcas pode olhar para aquilo e não entender a monumental obra de exaltação da estupidez humana que está à vista. Não, não é apenas incompetência, nem mau gosto levado ao extremo, nem simples estupidez. Em muitos e muitos casos a razão pela qual o litoral alentejano e o barlavento algarvio foram saqueados, sem pudor nem vergonha, tem apenas um nome: corrupção.

Acuso essa exaltante conquista de Abril, que é o poder local, de ter destruído, por ganância dos seus eleitos, todo ou quase todo o litoral português. Acuso agora José Sócrates de não ter tido a coragem política de cumprir uma das promessas do seu programa eleitoral, que era a de progressivamente financiar as autarquias a partir do Orçamento do Estado, em exclusivo, deixando de lhes permitir financiarem-se também com as receitas locais do imobiliário - deste modo impedindo que quem mais construção autoriza, mais receitas tenha. Acuso o Governo de José Sócrates de ter feito pior ainda, inventando essa coisa nefasta dos projectos PIN (de interesse nacional!), ao abrigo dos quais é o Governo Central que vem autorizando megaconstruções que as próprias autarquias acham de mais.

Acuso esta gente que só sabe governar para eleições, que não tem sequer amor algum à terra que os viu nascer, que enche a boca de palavrões tais como "preservação do ambiente" e "crescimento sustentado" e que não é mais do que baba nas suas bocas, de serem os piores inimigos que o país tem. Gente que não ama Portugal, que não respeita o que herdou, que não tem vergonha do que vai deixar.

Eu sei que não serve de nada. Ando a escrever isto há trinta anos, em batalhas sucessivamente perdidas - ontem por uma praia, hoje por um rio, amanhã por uma lagoa. E lembro-me sempre da frase recente de um autarca algarvio contemplando a beleza ainda preservada da Ria de Alvor e sonhando com a sua urbanização: "A natureza também tem de nos dar alguma coisa em troca!". Está tudo dito e não adianta dizer mais nada.

Acordo às oito da manhã destas férias algarvias, longamente suspiradas, com o ruído de chapas onduladas desabando, martelos industriais batendo no betão e um pequeno exército de romenos e ucranianos construindo mais um projecto PIN numa paisagem outrora oficialmente protegida. "É o progresso!", suspiro para mim mesmo, tentando em vão voltar a adormecer. Sim, o progresso cresce por todos os lados, sem tempo a perder, sem lugar para hesitações, como um susto. Tenho saudades, sim, dos sustos que os polvos me pregavam no silêncio do fundo do mar. E tenho saudades de muitas outras coisas, como o polvo do mar. Sim, eu sei: estou a ficar velho.