PARAÍSOS PROSTITUÍDOS
Miguel Sousa Tavares
Em muitos e muitos casos a razão pela qual o
litoral alentejano e o barlavento algarvio foram saqueados, sem pudor nem
vergonha, tem apenas um nome: corrupção.
Segunda feira, 28
de julho de 2008
A primeira vez que passei uns dias de Verão em Porto Covo, ainda o Rui
Veloso não tinha imortalizado a aldeia e a sua ilha do Pessegueiro. Pouco mais
havia do que aquela simpática praceta central, de onde irradiavam três ou
quatro ruas para baixo, em direcção ao mar, e duas ou três para os lados. Tinha
nascido uma pequena urbanização de casas de piso térreo, uma das quais me foi
emprestada por um amigo para lá passar uns quinze dias. Havia a praia em
frente, magnífica, e a angustiante dúvida de escolher, entre três restaurantes,
em qual deles se iria comer peixe, ao jantar.
Nos dois anos seguintes, arrastado pela paixão pela caça submarina, aluguei
uma parte de casa em Vila Nova de Milfontes, com casa de banho autónoma e duche
no pátio interior, ao ar livre. Instalei-me com o meu material de mergulho e um
pequeno barco de borracha, no qual ia naufragando quando o motor pifou e
comecei a ser arrastado pela corrente do rio Mira em direcção aos vagalhões à
saída da baía. Mas não era o sítio adequado para caça submarina e rapidamente
troquei a incerteza da minha destreza pelo esplendor de uma tasquinha branca,
de quatro mesas apenas, onde escolhia de manhã o peixe que iria comer à noite.
Foram dias de deslumbramento, naquela que eu achava ser provavelmente a mais
bonita terra do litoral português.
Mas foi Lagos, claro, a primordial e mais duradoura das minhas paixões.
Tudo o que eu possa escrever sobre a fantástica beleza da cidade caiada de
branco, com ruas habitadas por burros e polvos secando ao sol pregados aos
muros, uma gente feita de dignidade e delicadeza, praias como nenhumas outras
em lado algum do mundo, a terra vermelha, pintada de figueiras e alfarrobeiras,
prolongando-se até às falésias que ficavam douradas ao pôr-do-sol, enquanto as
traineiras passavam ao largo em direcção aos seus campos de pesca nocturnos,
tudo isso parece hoje demasiadamente belo para que alguém possa simplesmente
acreditar. Se eu contasse, diriam que menti - e eu próprio, olhando hoje Lagos,
também acho que seguramente foi mentira.
A partir de Lagos, fui descobrindo todo o barlavento algarvio, cuja luz é
tão suave que parece suspensa, como se não fizesse parte do próprio ar.
Descobri a solidão agreste de Sagres, onde se ia aos percebes ou apenas olhar o
mar do Cabo de S. Vicente, na fortaleza, que era rude como o vento e o mar de
Sagres, e hoje é uma casamata de betão que, ao que parece, se destina a
homenagear a moderna arquitectura portuguesa.
Descobri o charme antiquado da
Praia da Rocha, onde se ia à noite ver as meninas de Portimão, ou o
"souk" em cascata de Albufeira, onde se ia ver as inglesas e dançar
no Sete e Meio. E descobri outras terras de pescadores e veraneantes, como
Armação de Pêra ou Carvoeiro, praias de areia grossa e mar transparente como eu
gosto, cigarras gritando de calor nas arribas, polvos tentando amedrontar-me
quando os olhava debaixo de água.
Não vale a pena contar. Quem teve a sorte de viver, sabe do que falo; quem
não viveu, não consegue sequer imaginar. Porque esse Sul que chegava a parecer
irreal de tão belo, esse litoral alentejano e algarvio, não é hoje mais do que
uma paisagem vergonhosamente prostituída. Sim, sim, eu sei: o desenvolvimento,
o turismo, a balança comercial, os legítimos anseios das populações locais,
essa extraordinária conquista de Abril que é o poder local. Eu sei, escusam de me dizer outra vez,
porque eu já conheço de cor todas as razões e justificações. Não impede:
prostituíram tudo, sacrificaram tudo ao dinheiro, à ganância e à construção
civil. E não era preciso tanto nem tão horrível.
Podiam, de facto, ter escolhido ter menos turistas em vez de quererem
albergar todos os selvagens da Europa, que nem sequer justificam em receitas os
danos que em seu nome foram causados. Podiam ter construído com regras e
planeamento e um mínimo de bom gosto. Podiam ter percebido que a qualidade de
vida e a beleza daquelas terras garantiam trezentos anos de prosperidade, em
vez de trinta de lucros a qualquer preço.
E todos os anos, por esta
altura, percorrendo estas terras que guardo na memória como a mais incurável
das feridas, faço-me a mesma pergunta: Porquê? Porquê tanta devastação, tanto
horror, tanta construção, tanta estupidez? Tanto prédio estilo-Brandoa, tanto guindaste,
tanto barulho de obras eternas, tanta rotunda, tanta 'escultura' do primo do
cunhado do presidente da câmara, e sempre as mesmas estradas, os mesmos (isto
é, nenhuns) lugares de estacionamento, os mesmos (isto é, nenhuns) espaços
verdes?
Não, nem mesmo o mais
incompetente dos autarcas pode olhar para aquilo e não entender a monumental
obra de exaltação da estupidez humana que está à vista. Não, não é apenas
incompetência, nem mau gosto levado ao extremo, nem simples estupidez. Em muitos e muitos casos a razão pela
qual o litoral alentejano e o barlavento algarvio foram saqueados, sem pudor
nem vergonha, tem apenas um nome: corrupção.
Acuso essa exaltante
conquista de Abril, que é o poder local, de ter destruído, por ganância dos
seus eleitos, todo ou quase todo o litoral português. Acuso agora José Sócrates de não ter tido a
coragem política de cumprir uma das promessas do seu programa eleitoral, que
era a de progressivamente financiar as autarquias a partir do Orçamento do
Estado, em exclusivo, deixando de lhes permitir financiarem-se também com as
receitas locais do imobiliário - deste modo impedindo que quem mais construção
autoriza, mais receitas tenha. Acuso o Governo de José Sócrates de ter feito
pior ainda, inventando essa coisa nefasta dos projectos PIN (de interesse
nacional!), ao abrigo dos quais é o Governo Central que vem autorizando
megaconstruções que as próprias autarquias acham de mais.
Acuso esta gente que só sabe
governar para eleições, que não tem sequer amor algum à terra que os viu
nascer, que enche a boca de palavrões tais como "preservação do
ambiente" e "crescimento sustentado" e que não é mais do que
baba nas suas bocas, de serem os piores inimigos que o país tem. Gente que não
ama Portugal, que não respeita o que herdou, que não tem vergonha do que vai
deixar.
Eu sei que não serve de nada. Ando a escrever isto há trinta anos, em
batalhas sucessivamente perdidas - ontem por uma praia, hoje por um rio, amanhã
por uma lagoa. E lembro-me sempre da frase recente de um autarca algarvio
contemplando a beleza ainda preservada da Ria de Alvor e sonhando com a sua
urbanização: "A natureza também tem de nos dar alguma coisa em troca!".
Está tudo dito e não adianta dizer mais nada.
Acordo às oito da manhã destas férias algarvias, longamente suspiradas, com
o ruído de chapas onduladas desabando, martelos industriais batendo no betão e
um pequeno exército de romenos e ucranianos construindo mais um projecto PIN
numa paisagem outrora oficialmente protegida. "É o progresso!",
suspiro para mim mesmo, tentando em vão voltar a adormecer. Sim, o progresso
cresce por todos os lados, sem tempo a perder, sem lugar para hesitações, como
um susto. Tenho saudades, sim, dos sustos que os polvos me pregavam no silêncio
do fundo do mar. E tenho saudades de muitas outras coisas, como o polvo do mar.
Sim, eu sei: estou a ficar velho.
3 comentários:
Assenta muito bem em Almada e nas matreirices da Maria Emília e seus compadres.
Deixa cá ver, e os Neves, os Matias, os Almeidas, os Pereiras e as Oliveiras desta terra? A ME não faria tanta patifaria se não tivesse os capachos à disposição, pois não?
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